Jornalismo e interesses de classe
Vivemos num mundo em que, a nível internacional e dentro de cada país, as desigualdades aumentam em vez de diminuírem, o fosso entre os ricos e os pobres se acentua cada vez mais, é crescente a dependência dos países periféricos em relação aos mais desenvolvidos, a revolta e a resistência dos explorados emerge um pouco por todo o lado, seja a nível de classes tradicionalmente mais expostas à exploração, como os operários e os camponeses, seja a nível de camadas sociais intermédias cada vez mais próximas da proletarização, seja, finalmente, a nível de comunidades e povos submetidos a velhos e novos esquemas de exploração colonial, facilitada pela retórica e pela prática de uma globalização posta ao serviço dos grupos sociais dominantes.
Esta realidade conduz-nos, desde logo, a duas constatações, relacionadas entre si: a primeira é que a diferenciação e o confronto de classes existem, ainda que não necessariamente expressas e concretizadas das mesmas formas que no passado. Trata-se de uma realidade que não pode ser iludida por expedientes como, por exemplo, a criação pontual de “grandes desígnios”, como é o caso quando se procura transformar determinados eventos (Expo 98, Euro 2004...) em ocasião para a afirmação de uma “unidade nacional” acima das classes, visando um aproveitamento ideológico que claramente procura tirar partido do eventual valor e interesse próprios de tais eventos.
A segunda é a de que não é possível conceber que os media, nomeadamente os grandes órgãos de informação generalista, se situem à margem dos pequenos e grandes embates sociais, a nível nacional e internacional, com que quotidianamente, directa ou indirectamente, nos confrontamos. Tendo os media como referência a realidade social, e sendo esta diversificada, movente e contraditória, será que poderia ser de outra maneira?
Media, politica, ideologia
A sociedade capitalista de hoje é indiscutivelmente mais complexa do que era há 100, 50 ou mesmo 30 anos, mas as diferenciações e a conflitualidade social não só não desapareceram como se acentuaram e alargaram a novos sectores – um dos quais, precisamente, é o da comunicação e da informação.
Os media (jornais, revistas, estações de rádio e de TV, Internet) não são exteriores a esta conflitualidade, não vivem isolados numa torre de marfim que os tornaria imunes às influências e solicitações exteriores. As suas próprias regras de funcionamento (sublinhemos: informar é sempre escolher) não lhes permitem abster-se de tomar posição sobre as grandes e pequenas questões sociais. Note-se que o “tomar posição” não se exprime apenas, nem sequer principalmente, pelas ideias difundidas, por exemplo, em editoriais assinados pelos directores ou outros responsáveis editoriais. Exprime-se – e exerce influência sobre o público – pela orientação global e continuada do órgão de informação, pelo que diariamente se diz e como se diz, e também, e talvez principalmente, pelo que se não diz.
Os media estão profunda e intimamente ligados às pessoas e à sociedade nos planos da informação, do conhecimento, do entretenimento e da ideologia:
- da informação, na medida em que a selecção dos acontecimentos que são escolhidos para serem notícia, e posteriormente a sua elaboração, hierarquização e apresentação são submetidas a estes e não aqueles critérios (os chamados “valores-notícia”), oferecendo ao público um determinado, e não outro, “retrato” da realidade e sua interpretação;
- do conhecimento, na medida em que para a maioria do público os media funcionam como o meio privilegiado ou mesmo único para a apreensão e a tomada de contacto com as realidades que ultrapassam a sua experiência quotidiana;
- do entretenimento, na medida em que esta função dos media, tornada predominante – nas programações televisivas e radiofónicas, na multiplicação de um certo tipo de publicações especializadas e, cada vez mais, no próprio tratamento da informação – atenua ou mesmo obscurece as funções formativa e informativa, ao mesmo tempo que preenche quase em exclusivo as horas de lazer de milhões de portugueses;
- da ideologia, na medida em que, enquanto transmissores de informação, conhecimento e entretenimento, os media, de forma directa ou indirecta, são, inevitavelmente, portadores de conteúdo ideológico, mesmo quando (ou principalmente quando) veementemente se afirmam alheios a quaisquer tipos de vinculações desse tipo.
Vemos assim como, por diversificadas formas e caminhos, os media constroem uma determinada realidade, e é nessa realidade fabricada pelos media que as pessoas baseiam, em grande parte – segundo processos estudados pelas “teorias dos efeitos” – as suas opiniões, atitudes e comportamentos. E quando falamos dos media, falamos de todos eles, sendo certo que, nos nossos dias, as televisões generalistas assumem um papel preponderante nesta função.
Quando se fala da evolução dos media em Portugal nas últimas décadas há quem defenda que na passagem da década de oitenta para a de noventa, com o desaparecimento de jornais politicamente muito marcados e a criação de outros reivindicando-se da isenção e da independência perante “todos os poderes”, a reprivatização da imprensa anteriormente nacionalizada e a sua entrega, assim como dos dois novos canais de televisão, aos privados (os grandes grupos económicos, obviamente), se assistiu à “despartidarização” e ao fim da influência da política nos media. Nada mais falso. A política, incluindo a partidária, continuou a ter uma decisiva importância nas orientações editoriais, ainda que de uma forma – geralmente, mas nem sempre – mais sofisticada. Ao mesmo tempo que ao poder da política se acrescentou, a um nível muito mais elevado, o poder económico, trocando-se a tutela do Estado pela dos grandes capitalistas.
Cremos que aquilo que observámos nos meados da década de noventa mantém hoje actualidade: “As transformações nos media trouxeram consigo uma nova forma de estes e relacionarem com o público e de influenciarem a opinião pública. O desaparecimento da imprensa de tendência e a actual predominância, por um lado, da imprensa de referência ou de qualidade e, por outro, da imprensa popular, não significa que os media tivessem deixado de veicular mensagens políticas e ideológicas, mas sim que o passaram a fazer de outras formas. Ao contrário do que possa parecer e alguns pretendem fazer acreditar, o ligeirismo e o divertimentismo das programações televisivas, por exemplo, revelam-se profundamente políticos e profundamente ideológicos”, pela influência que têm nos comportamentos, valores, interesses e atitudes sociais, culturais e cívicos – e portanto políticos e ideológicos – das pessoas.
A verdade é que, em certo sentido, toda a informação é de classe, defende pontos de vista de classe, o que, aliás, bem se compreende se tivermos em conta a natureza dos media enquanto fenómeno social, e a íntima e incontornável ligação entre as temáticas dos órgãos de informação e a vida humana nas suas várias dimensões. Não é outra, aliás, a conclusão a que chegam os sociólogos da comunicação quando reconhecem, por exemplo, a decisiva contribuição dos media para a formação do “consenso” em torno dos valores sociais dominantes, o conformismo, a defesa do status quo.
Para o mesmo resultado contribui a adopção, por parte dos jornalistas, de regras profissionais que – sem que seja esse o objectivo – acabam, de forma implícita, por ajudar à manutenção da actual hegemonia de classe. Na análise de John Soloski, os jornalistas, em princípio, “não se põem a relatar conscientemente as notícias de modo a que o actual sistema político-económico seja mantido. A selecção de acontecimentos e de fontes noticiosas decorre ‘naturalmente’ do profissionalismo jornalístico.” Contudo, por exemplo, “ao concentrar-se no desvio no estranho e no insólito, os jornalistas defendem implicitamente as normas e os valores da sociedade. Como as fábulas, as ‘estórias’ noticiosas contêm uma moral oculta.”
O reconhecimento desta realidade, entretanto, não pode significar a abdicação perante o esforço na procura de uma informação, apesar de tudo, mais isenta e rigorosa, nomeadamente, entre outros aspectos, através da luta pela observância da clara distinção entre os factos e a opinião. Nem nos dispensa, antes nos obriga, a reflectir e perceber melhor os mecanismos e as estratégias que tornam operacional e eficaz o domínio de classe através dos media.
Um factor essencial tem que ser considerado logo à partida, na medida em que se revela de significado decisivo para a compreensão do lugar social dos media: a questão da propriedade. Com efeito, o facto de praticamente todos ao grandes órgãos de informação, quer se trate da imprensa, da rádio, da televisão e do on-line, pertencerem a grandes grupos económicos, define uma realidade que decisivamente condiciona as funções sociais dos media e os próprios contornos do panorama mediático nacional.
Um elevado grau de concentração como o que actualmente se verifica em Portugal faz com que a informação, o conhecimento e o entretenimento mediáticos sejam dominados por um pequeno núcleo de pessoas e entidades representantes de um restrito e privilegiado grupo social, o que lhe imprime uma insofismável natureza de classe.
A questão essencial
A existência e o papel dos grupos económicos nos media não são, ou pelo menos estão longe de ser apenas, o mero resultado da iniciativa de alguns indivíduos poderosos motivados pelo lucro e/ou pelo poder, mas sim o reflexo de um sistema social do qual são componentes essenciais e complementares, por um lado, o movimento generalizado de concentração da propriedade nas mãos de representantes dos grupos sociais economicamente mais fortes, nomeadamente dos sectores financeiro e industrial e, por outro lado, a absoluta necessidade de os principais meios de produção da informação e do conhecimento, e portanto do controlo social, estarem ao seu serviço.
Trata-se, portanto, de uma realidade política, económica, sociológica e ideológica que determina situações, atitudes e pontos de vista indissociáveis de uma pertença de classe, com óbvias consequências ao nível, por exemplo, das perspectivas e enquadramentos de abordagem da realidade, da valorização relativa dos diversos actores sociais, da expressão das várias correntes de opinião, ou seja, pelos seus efeitos na lógica de funcionamento do sistema mediático em geral e do campo jornalístico em particular.
Esta realidade de classe permite-nos afirmar que a questão da maior ou menor concentração da propriedade dos media é, em certo sentido, uma falsa questão – ou, pelo menos, não é a questão essencial. No que se refere à defesa do pluralismo ideológico e à diversidade de opiniões políticas, assim como à generalidade das consequências e efeitos acima referidos, a existência de mais ou de menos grandes grupos não altera o fundo do problema.
O essencial não reside no maior ou menor grau de concentração, mas sim na natureza de classe da propriedade, isto é, no facto de os media de maior influência estarem, praticamente todos, nas mãos de uma determinada classe social e, naturalmente, dependerem ou estarem irremediavelmente condicionados pelos seus interesses.
Relativamente a alguns aspectos, como a liberdade e a mobilidade de emprego, a situação caracterizada por um menor grau de concentração não seria exactamente igual, mas o mesmo não aconteceria relativamente a outros aspectos, incluindo o respeito pelo pluralismo e pela igualdade de tratamento no plano político e ideológico. As diferenças de tratamento que haveria seriam – e tal como hoje geralmente acontece – as ditadas pelos interesses conjunturais das políticas de concorrência e de conquista de audiências, e não as resultantes da diversificação de opções ideológicas correspondentes à conflitualidade de interesses existente na sociedade.
A abordagem da questão da concentração sem ter em conta esta perspectiva será sempre, inevitavelmente, redutora. A semelhança de agendas dos grandes media informativos, a convergência dos seus posicionamentos sempre que estão em causa os valores tidos como essenciais da chamada “civilização ocidental” (chapéu que, muitas vezes, serve apenas para cobrir os interesses das classes dominantes), o consenso social que eles promovem em torno desses valores, mostram até que ponto o fundo da questão reside na natureza de classe da propriedade dos media. Neste contexto, o movimento de concentração releva da competição entre os vários representantes do grande capital (nacional e/ou estrangeiro, para o caso é indiferente) e da luta pelo controlo dos mercados, no plano, portanto, dos objectivos comerciais, e não do interesse em defender o pluralismo ou proporcionar ao público uma melhor informação.
Esta perspectiva sobre a questão da concentração não significa que se devam subestimar as iniciativas legislativas visando a diminuição e a regulação da concentração em geral e em aspectos específicos, na medida em que, apesar de tudo, quanto mais proprietários emissores houver mais possibilidades existem de minorar pelo menos alguns efeitos negativos da concentração.
Devemos evitar na análise qualquer tipo de mecanicismo, nem cair em interpretações de carácter determinista, com base nas quais, a partir do momento em que se estabelece – o que é incontroverso – a ligação entre a propriedade dos grandes media e o poder capitalista, “tudo está explicado”.
Não pode ser esquecida a existência de uma margem de autonomia dos media em relação ao sistema, ainda que se trate apenas de uma autonomia relativa. Como dizem Curran e Seaton, “os media não apenas expressam os interesses das classes dominantes, têm uma função independente na ordenação do mundo. Os media não ‘reflectem’ apenas a realidade social: cada vez mais ajudam a fazê-la”.
É esta a razão pela qual, mesmo que não haja dúvidas sobre a importância dos media, em geral, como instrumento da dominação capitalista – desde logo devido à natureza da sua propriedade, e tudo o que ela implica – se torna, no entanto, indispensável aprofundar o estudo dos dispositivos que permitem a melhor compreensão das engrenagens desse domínio, ele próprio não isento de contradições.
Mas há que ter consciência que estamos perante una questão de sociedade, enraizada no sistema social, e cuja alteração radical será impossível sem a transformação profunda do próprio sistema, do qual os media são, hoje em dia, um dos principais elementos estruturantes.
Autor: Fernando Correia (Jornalista e Professor Universitário)
Recolha: Altino Pinto (3º Ano Comunicação Social)
Colocado por: André Pereira
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